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Nutricídio e casos da indústria

A indústria alimentícia passa por cima de populações inteiras para garantir sua engrenagem. Houve um caso até de grande corporação lutando contra campanha de amamentação para que as mães comprassem seus leites em lata. Lembrou de teoria da conspiração? Com dois exemplos, vou mostrar para você que infelizmente a agenda para alcançar cada vez mais pessoas e fazer com que elas consumam é real! 

O primeiro caso acontece(u) aqui no Brasil, como mostrou uma reportagem do New York Times, feita em setembro de 2017 com o tema “Como as grandes empresas deixaram o Brasil viciado em junk food”. A reportagem acompanhou vendedoras diretas, que levavam itens como chandelle, kit-kats, cereais infantis mucilons e bolachas recheadas de porta em porta. Soava como oportunidade! Dietas tradicionais passaram a ser preteridas por aqueles produtos dos comerciais de TV, que pareciam tão saudáveis, práticos e gostosos disponível na porta de casa a um preço pagável. Isso quando a população já não estava em uma situação de insegurança alimentar, que só era aprofundada pela empresa.

A reportagem faz a relação entre essa alimentação cheia de açúcar e gordura, com poucos nutrientes e acessíveis com o crescimento de condições como obesidade mórbida, hipertensão, doenças cardíacas e diabetes. A ação não era exclusividade do Brasil e de outros países da América Latina, mas também da África e da Ásia, visto que a empresa em questão estava com crescimento desacelerado em países desenvolvidos e precisava garantir o lucro, mesmo que fosse pela invasão predatória e agressiva de comunidades com seus próprios padrões alimentares.

O outro caso aconteceu no México, mais especificamente em San Cristobal de Las Casa, uma cidade onde os moradores tinham acesso muito limitado à água potável, coisa de uma, duas vezes por semana, sendo ainda um líquido cheio de cloro, quase imbebível. No entanto, uma fábrica local de um refrigerante famoso tinha acesso ilimitado aos aquíferos e vendia a bebida cheia de açúcar e gás a um preço menor que uma garrafa de água. 

O resultado é que a população do estado de Chiapas, onde está localizada a cidade, consumia, em média, dois litros de refrigerante por dia. Segundo reportagem do Estadão, o efeito na saúde dos moradores foi devastador. Entre 2013 e 2016, a mortalidade em decorrência de diabetes em Chiapas aumentou 30%, se tornando a segunda principal causa de óbitos no estado. 

Não posso dizer que a situação melhorou. As comidas embaladas, os fast foods e até os cheios de sal e açúcar disfarçados de saudáveis ainda estão em alta. Comprar do pequeno, fortalecer do seu bairro, plantar e colher é uma ação que deve ser incentivada!

“Quem controla a comida, controla o mundo”

A emblemática frase de Rima Laibow infelizmente não se trata de um achismo. Neste texto, quarta parte do conteúdo sobre nutricídio (confira os outros textos clicando aqui), vamos falar um pouco da monocultura e como ela define nossa forma de comer. Ouvimos com frequência “eu escolho comer arroz, feijão e bife todos os dias”, “não vejo problema em comer salsicha”, “frutas é para quem tem dinheiro” mas não é bem uma escolha. 

Após as grandes guerras, na década de 40, o mundo observou uma industrialização de diversos processos produtivos, entre eles, a produção e preparo de alimentos. Modificação de sementes, cruzamentos e transgenia foram algumas das ‘tecnologias’ desenvolvidas visando maior produção por um custo menor. O problema disso é que a perda de nutrientes virou uma regra, assim como a monotomia na forma de comer. 

Este movimento nos definem até os dias de hoje. É difícil, reconheço, consumir produtos 100% naturais, sem sal, sem açúcar, e carnes no geral, tão reconhecidos pelas mais de 10 mil papilas gustativas das nossas línguas. O paladar viciado também em farinha de trigo e manteiga, por exemplo, até estranham e desestimulam o consumo das inúmeras hortaliças, frutas e grãos disponíveis na natureza. 

Com a alta demanda por alguns produtos, as indústrias, que criaram esse desejo, criam os desertos alimentares, ou seja, uma destruição em massa de uma localidade com uma biodiversidade imensa, com animais, plantas e árvores comestíveis convivendo de forma equilibrada, para fazer a monocultura: plantação de uma única espécie vegetal ou criação de uma única espécie animal. As monoculturas vegetais mais famosas no Brasil são a soja (que inclusive alimenta a indústria de ultraprocessados e o gado), o trigo, a cana de açúcar e o café.

Cabe mencionar que a mesma indústria dona da monocultura é quem produz os remédios que precisamos tomar por consumir durante anos a fio os alimentos cheios de veneno produzidos por eles. É um lucro desenfreado em cima de doenças como diabetes, hipertensão e diversos tipos de câncer. Muitos movimentos lutam contra isso, pregando a policultura, que visa o cultivo de diversas espécies em um mesmo local, fomenta pequenos produtores e deixa a natureza agir por si. A permacultura é um desses movimentos que tem por objetivo a sustentabilidade e o cuidado com a terra, com as pessoas e ainda divide os excedentes. 

Em 2018, o Ministério do Desenvolvimento Social, extinto também pelo atual presidente, publicou um primeiro mapeamento nacional de desertos alimentares com o objetivo de entender de que maneira renda, região e tipo de estabelecimento influenciam na oferta de alimentos. Há críticas ao estudo, como por exemplo, a falta de dados mais completos, em especial nos municípios médios e pequenos, mas a constatação geral é que quanto maior a cidade, menor a disponibilidade de alimentos frescos e maior a aquisição de ultraprocessados. Clique aqui para ler o relatório completo.

No próximo texto vamos dar dois exemplos emblemáticos da atuação da indústria alimentícia em periferias e povoados, que antes de sua chegada até tinham problemas, mas que observaram uma piora em suas saúdes por conta da ação predatória e capitalistas das gigantes. Até breve!

População negra e o nutricídio: outra forma de sucumbir

Segmentando para a vivência das pessoas negras, doenças como hipertensão, diabetes e acidente vascular cerebral (que inclusive integram o grupo de risco da covid-19), e seus fatores de risco, tabagismo, consumo abusivo de álcool, falta de atividades físicas e baixo consumo de frutas e hortaliças, são resultados palpáveis de uma abolição mal feita, que jogou este grupo social para uma vulnerabilidade social, política, cultural, ambiental e econômica. O Boletim Epidemiológico da Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo, por exemplo, evidencia que o risco de pessoas negras morrerem pela covid-19 é 62% maior em relação à população branca no município. 

 

A pesquisa “Vigitel 2018 — População Negra”, realizada pelo Ministério da Saúde, informa que o consumo regular de frutas e hortaliças é 33% menor na população negra brasileira em relação à branca. Aponta ainda que 39% dos brancos consomem esses alimentos ao menos cinco dias na semana, o percentual cai para 29% na população negra. Isso sem aprofundar a questão dos agrotóxicos. Quais frutas e hortaliças são essas? Em 15 anos, o consumo de agrotóxico no nosso país aumentou mais de 180%. Nos últimos meses, 118 desses venenos foram liberados. 

 

Acredito que a criação e, principalmente, a execução de políticas públicas direcionadas são essenciais. Para além dos dados, são necessárias reparações históricas que nos colocaram enquanto grupo nesta situação de vulnerabilidade. O estímulo ao consumo de pequenos produtores negros, de bairros periféricos, quilombolas, é relevante. Os próprios produtores precisam saber que aquela atividade vai agregar valor para seu sustento.

 

Para citar um exemplo do campo político, a Comissão de Políticas para Segurança Alimentar e Nutricional das Populações Negras, do Conselho Nacional de Segurança alimentar e Nutricional (Consea), apresentou a intenção de incorporar a temática racial na construção de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional, de potencializar e divulgar ações já desenvolvidas junto à população negra nesta área, de fortalecer a produção e comercialização de alimentos por populações remanescentes de quilombos, entre outras ações. No entanto, o Consea, considerado como parte fundamental para a população em termos de segurança alimentar e nutricional, foi extinto no primeiro dia do atual governo brasileiro. 

 

A insegurança alimentar soma-se à diversas outras formas de genocídio. É uma corrida pela sobrevivência no país da ‘simpatia’ e do ‘acolhimento’. Vamos fazer a nossa parte?

Uma solução para desigualdade mundial

Continuando a discussão sobre nutricídio, cito mais duas fontes que falam sobre isso no mundo. Ama Mizani é mulher Rastafari, estudiosa e experimentadora de práticas de Saúde Holística Africana e fala de reapropriação história, com foco nas práticas alimentares ancestrais africanas, inspirada nos estudos do doutor Llaila O. Afrika, e renascidas no conceito de I-tal, que acredita que o alimento deve ser natural, ou puro e da terra. Os rastafáris, por exemplo, evitam comidas que tenham sido quimicamente modificadas ou que contenham aditivos artificiais, como corantes, flavorizantes e conservas, assim como o sal e carnes no geral; e a doutora Rima Laibow fala de forma mais enfática contra a indústria alimentícia, e expõe em suas falas o nutricídio planejado promovido pela mesma indústria. 

 

Falando mais um pouco do cenário brasileiro, a queda na renda por conta do aumento do desemprego resulta na compra de alimentos mais baratos, que, como sabemos, são os ultraprocessados. Mesmo com renda, prioriza-se alimentos de fácil e prático preparo para dar conta do ritmo capitalista que se alastrou no mundo exigindo produtividade. Isso coloca também a ‘barriga no fogão’ como um privilégio, e não como um direito essencial de exercer práticas autônomas que promovem a saúde. 

 

A pandemia da covid-19 só acentua essas desigualdades. Até o fim do ano, a população em extrema pobreza na América Latina e Caribe pode chegar a 83,4 milhões de pessoas, ou seja, um aumento de 15,9 milhões em relação a hoje. Qual seria a solução para um problema tão latente no Brasil e no mundo?

 

Acredito que alguns dos caminhos são: colocar cada vez mais a alimentação orgânica e acessível no centro das conversas sobre qualidade de vida, porque não basta só comer frutas, elas precisam vir sem agrotóxicos; confeccionar cada vez mais hortas urbanas e disseminar também o conhecimento sobre PANCs; promover o resgate ancestral das formas de se alimentar, valorizando produtores locais e aproveitamento integral dos alimentos, assim como o lixo zero. O Brasil é um país muito rico e com uma diversidade de alimentos incrível, mas precisamos de igualdade para que ele se torne bom e saudável para todas as camadas da sociedade.

Precisamos falar sobre o nutricídio

Uma das práticas que incentivo fortemente é a reflexão sobre a indústria dos alimentos processados. Busco diariamente por formas de driblar esta imposição na forma de comer que atinge praticamente o mundo inteiro. Encaro a alimentação como um ato político pela qualidade de vida merecida, e expando esta ideia para a Free Soul Food, empreendimento onde trabalho com a minha mãe e com inúmeras outras mulheres negras. 

Enquanto mulher negra, brasileira, que trabalha com alimentação saudável e inclusiva e também uma observadora dos inúmeros dados que apontam o grupo social ao qual pertenço como mais predisposto a adquirir e desenvolver doenças crônicas como diabetes e hipertensão, ou morrer de Covid, entre outras razões, por não ter imunidade o suficiente, para mim é uma necessidade falar de nutricídio, ou seja, o genocídio nutricional.

O nutricídio é um termo cunhado pelo doutor Llaila O. Afrika, estudioso da saúde holística africana. Ele discute as mudanças que as invasões europeias levaram para a saúde das inúmeras populações negras, desde a antiguidade até os dias atuais, que por conta da segregação, e das desigualdades sociais provenientes dela, encontram nos alimentos cheios de agrotóxicos, transgênicos e ultraprocessados opções mais baratas de se alimentarem, do que em alimentos naturais e/ou orgânicos, que antes até eram plantados por essas mesmas pessoas ou seus antepassados. 

Esta alimentação trouxe doenças e vulnerabilidades difíceis de superar, e não apenas para moradores dos países da África, que por séculos foram discriminados e afetados por guerras, sequestros e outras violências, mas também para os integrantes da diáspora. 

O Brasil entra aqui. As formas de segregação ainda hoje são percebidas em bairros periféricos e em zonas rurais. Recomendo, para reflexão, o documentário Dia de Pagamento, dirigido e roteirizado pela jornalista Fabiana Moraes, que, entre outros assuntos relevantes sobre o Sertão brasileiro, fala um pouco da alimentação. 

Por essas questões, trabalho pelo resgate e pela difusão de uma alimentação inclusiva, feita com ingredientes usados integralmente há muito tempo por nossos antepassados. Também atuo por uma autonomia alimentar que valorize alimentos de origem vegetal, principalmente aqueles adquiridos pela filosofia de quilômetro zero, que valoriza produtores locais. 

Nos próximos posts vou explicar um pouco mais sobre nutricídio, citando outros autores que estudam a questão, como a nutricionista Ama Mizani e a doutora Rima Laibow. Também irei apresentar mais dados sobre o Brasil e alguns casos sobre a indústria alimentícia.

Qual a sua opinião sobre o assunto? Caso tenha uma empresa que trabalhe com alimentação, quais táticas você emprega para diminuir essas desigualdades? Vamos trocar!

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